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Curiosidades

O resgate de um cão (Neo): um caso de amor

Dentre todas as histórias curiosas que aconteceram com o grupo RA na canoagem, esta é uma das quais eu conservo com mais carinho. Por ser uma história de amor que perdura até hoje, faço questão de registrá-la nos mínimos detalhes.

Tudo aconteceu no Riacho Grande, reservatório localizado na região do ABC, em São Paulo. Lá, junto ao João Paulo, intensifiquei a prática da canoagem após a compra dos nossos primeiros caiaques.

João Paulo e eu havíamos marcado a remada para depois do almoço. Nós costumávamos remar partindo da prainha do Riacho Grande, ou então de um estacionamento próximo ao Parque Estoril. Mas, naquele dia, resolvemos explorar um novo ponto de acesso, e resolvemos seguir em direção à Estrada Velha de Santos. Seguimos por essa estrada que, em vários locais, se aproxima das águas da represa. Escolhemos como ponto de partida o restaurante flutuante Netuno, onde poderíamos estacionar o veículo com segurança. A escolha de um novo local não seria um simples acaso: o destino havia traçado algo maior para um cão e eu.

Começamos a remar sem destino certo, conversando, vislumbrando a paisagem e curtindo a natureza, até que, em um dos cantos da represa, avistamos um cão. Ele parecia estar em um simples braço de terra que invadia a água, mas ao margear aquele pedaço de terra, percebemos que o cão estava ilhado! Ele estava realmente abandonado em uma ilha! Havia uma faixa de água de aproximadamente 70 metros até a margem da represa, o que nos fez acreditar que não havia condições daquele cão ter ido sozinho para aquela ilha. Ele havia sido realmente abandonado.

Aproximamo-nos um pouco da margem onde estava o cãozinho, mas sem pisarmos em terra firme. Havia certo receio, pois não sabíamos se o animal estava doente (raivoso, por exemplo) ou se ele seria agressivo. Afastado uns três metros da margem, arremessei um dos lanches que carregávamos conosco (comida não falta em nossas remadas). Ele praticamente engoliu a comida sem mastigá-la, e ficou cercando-nos pela margem, mostrando interesse em vir na nossa direção. Nesse meio tempo, bate uma vontade de fazer xixi! Como estávamos com medo de nos aproximar do cão, decidimos cruzar aquela faixa de aproximadamente 70 metros de água e “ir ao banheiro” do outro lado, “em segurança”. Estávamos nos aliviando e conversando e, ao olhar para trás, uma imagem surpreendente: o cão mergulhou e vinha nadando em nossa direção! Não restou alternativa a não ser aguardar a chegada dele.

Aguardamos, e enfim ele chegou. Falei ao João Paulo para que entrasse no caiaque que estava com os lanches e ficasse afastado do cão, enquanto eu, na margem, pensava no que fazer, Ele farejou a comida que carregávamos e ficamos com receio de que ele nos atacasse para conseguir alimento. Tranquilos por saber que aquele cão não estava mais abandonado em uma ilha, tentamos ir embora. Mas nos enganamos! Quando olhamos para trás, avistamos o cão dentro d’água, nadando em nossa direção novamente! Agora o medo era outro: ele jamais nos alcançaria, e temíamos que ele insistisse na empreitada e assim morresse afogado. Afinal, o ponto de onde embarcamos os caiaques estava muito longe, a quase um quilômetro de onde encontramos o cão. Perguntamo-nos: “o que fazer?” e a única resposta em nossas mentes era: “voltar e buscar aquele animal”. Aí vinha outra pergunta: “estamos de caiaque, como o faremos”?

Voltamos para a margem, e o cachorro saiu da água nos circundando. Nesse momento a única coisa que pensei era: “vou tentar fazer amizade com ele, conquistar sua confiança e colocá-lo dentro do caiaque. Assim poderei levá-lo daquele local, até alcançarmos um porto seguro, onde possamos deixá-lo”.

É difícil descrever o árduo trabalho para colocar aquele animal a bordo do caiaque. Eu, com medo de ser mordido. Ele, com medo de um estranho, que tentava colocá-lo a bordo de um pequeno pedaço de plástico liso, que balançava sem parar com as ondulações provocadas pelo vento forte, fazendo assim com que o cão caísse frequentemente na água.

Depois de muitos escorregões e tombos na água próximos à margem, segui a remada com o João Paulo, carregando meu novo e nobre companheiro no compartimento de carga do caiaque. Durante a travessia de quase uma hora no meio da represa, muitos tombos e subidas a bordo. De tanto conversar, agradar e interagir com o cão, descobrimos uma maneira fácil para que ele subisse no caiaque: bastava estender a mão, ele me dava sua pata e eu puxava-o pelo peito. Pronto! Estava embarcado de novo! E estávamos assim nos tornando grandes amigos!

Remamos em direção ao Recanto do Pescador, local em que havia muitas pessoas. Imaginamos que lá o cão pudesse se distrair com alguém e assim deixar-nos seguir com nossa remada. Ao chegar ao local, uma alegria: além de várias crianças que acompanhavam seus pais pescando, havia mais alguns cães nos arredores. Agora era só esperar que ele se enturmasse com aquelas pessoas e animais e nos deixasse ir embora. Foi o que “quase” aconteceu. Deixamos o cão andar à vontade, fingimos ignorá-lo, até que ele desapareceu no meio do mato com outros cães. Comentamos: “agora sim podemos partir!” Mais uma vez nos enganamos.

Já estávamos a mais de 300 metros da margem, quando resolvi olhar para trás, e avistei ao longe uma cabecinha dentro d’água! Lá vinha ele de novo! Não sobrou alternativa, que não fosse voltar para buscá-lo. Mas dessa vez não ficaríamos tentando encontrar lugares para deixá-lo. Ficaríamos remando com ele até o fim do dia e o deixaríamos no local de onde, inicialmente, embarcamos os caiaques.

Passando pelo local onde nosso carro estava estacionado, encontramos algumas pessoas à margem, e como ainda havia cerca de uma hora para acabar o dia, tentamos uma última vez deixar aquele cãozinho seguir seu caminho. Havia um rapaz retirando seu barco da água, que comentou conosco ter tentado resgatar aquele cãozinho, mas sem sucesso. Aí fiquei me perguntando: “como esse cara não conseguiu resgatá-lo com seu barco, se eu consegui colocá-lo em um caiaque”? Tentei como última opção deixar nossos lanches com aquele rapaz. Comentei que demos um lanche ao cão, e que acreditávamos que ele estava conosco atrás de mais comida. Pedi ao rapaz que tentasse distraí-lo com a comida enquanto nós nos afastávamos. Naquele instante, virei de costas pensando: “se esse cachorro largar a comida e vier atrás de nós, eu o levarei para minha casa!” Embarcamos, e, ao olhar para trás, lá estava o cachorro na água, e o rapaz com os lanches na mão. Voltei para buscá-lo, a esta altura já emocionado, por perceber que aquele cãozinho não estava apenas atrás de comida. Ele havia confiado em nós e mais uma amizade surgia. Entre tombos na água, subidas e paradas tentando deixá-lo, permanecemos aproximadamente três horas nos conhecendo naquele caiaque.

Eu sabia que, em casa, compraria uma briga com os familiares, pois sempre tivemos muitos animais, e fica difícil cuidar de tantos. Mas eu também tinha certeza de que, depois dessa história, ninguém permitiria que eu me afastasse daquele cão. Acabei batizando-o de Neo, que é o nome do caiaque que usei para resgatá-lo, instrumento por meio do qual nos aproximamos.

Hoje, Neo está na chácara de nossa família em Biritiba Mirim, interior de São Paulo. Lá, junto de outros cães, ele é alimentado, bem cuidado e tem uma imensa área para correr e se divertir. Já comentaram comigo sobre a forma como ele me trata, seu carinho (e ciúme) é tanto, que ele não permite que eu fale com outros cães. Se ele me escuta pronunciando “Tigrão” (o nome do Dálmata que possuímos), ele rosna para o Tigrão e aí a briga é certa. Imagina o que ele faz quando me vê agradando o outro pobre coitado. Por isso só posso me aproximar dele quando o Neo não está por perto.

Não o vejo todos os dias, afinal, não moro lá. Mas tenho certeza de que ele está bem. É impossível descrever a alegria com que ele me recebe quando chego ao sítio. Escrever, e publicar, essa história foi muito importante para mim. Não imaginei que “reunir amigos” na água extrapolaria a condição humana. É por isso que procuramos sempre respeitar ao máximo os locais por onde passamos, pois a integração e interferência no meio visitado é sempre um fato, que pode se desenrolar de forma negativa ou positiva. Mas é claro que preferimos sempre desta última maneira.

Depois daquele episódio, nunca mais levei o Neo para andar de caiaque. Não sei como ele reagiria diante do mesmo, se ele enxergaria o caiaque como algo “traumático” ou “salvador”. Quem sabe esse passeio ocorra em um dia próximo… Se acontecer, com certeza o relato também estará publicado neste site da RA Canoagem.

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